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22.8.06

Aventuras caseiras 4 

Todos nós temos um demônio interior, desde Raskolnikov, passando por Joseph K. até senhorita K. Se alguém me perguntasse o nome do demônio, ele provavelmente responderia, voz sibilante saída diretamente do meu útero histérico, tal como na bíblia: meu nome é legião.

Tenho muitos demônios, dos mais variados matizes, efeitos e manifestações. Mesmo muitos, os legionários podem ser divididos em duas categorias fundamentais: os demônios filosóficos e os demônios prosaicos.

Normalmente, os demônios filosóficos se apossam de mim com tamanha voracidade que, nos surtos, chego a perder idéia de nome de pai e mãe. Há demônios filosóficos dos mais diversos tipos: desde os primários, do tipo ser ou não ser, até aqueles dinheiro ou prazer, casamento ou modernidade, filhos, literatura ou gibi antes de dormir.

Mas, nos últimos tempos, meus demônios filosóficos andam bem adormecidos. Às vezes, chego até a me esquecer de que eles existem (ok, essa parte é mentira, afinal eu sou 1. mulher; 2. geminiana).

Ando às voltas com as diabruras dos meus demônios mais prosaicos.

Na última semana, fui possuída pelo demônio do cabelo.

Até os 21 anos, tinha os cabelos lindos. Curtos ou compridos, eles sempre calhavam de ficar na posição, formato e malemolência que eu desejasse.

De uns tempos pra cá, porém, se eu sonho que acordo com o cabelo escorrido, é batata: parecem duas espigas enormes e cheias. Se, por outro lado, eu quero deixá-lo embutidos, meninota, apareço como Josie das pussycats.

Um drama.

Um drama maior ainda porque eu realmente gostaria, do fundo do meu coração, que inventassem de uma vez por todas uma solução miraculosa para os cabelos femininos que não fosse cara, não fosse gosmenta como as pomadas (quem não acha pomada de cabelo gosmento, por favor?), uma chateação de fazer como as chapinhas (que ainda deixam minha testa maior), doloridas como as escovas e patéticas como os bobes. Já tentei todas essas alternativas e não gostei de nenhuma. Principalmente porque elas demoram rios de tempos para se concretizarem, e demandam idas, idas e mais idas ao cabeleireiro, que poderiam ser evitadas facilmente caso o Elida Hair Institute percebesse como esses tratamentos são paliativos e inventasse logo a solução capilar definitiva.

Enquanto isso, eu me consolo em ir trabalhar com os cabelos meio para dentro, meio para fora, numa textura duvidosa que não combina com nenhuma das treze roupas que eu tenho. Droga. Lá vem o demônio do vestuário atacando de novo.

Vou comer chocolate.

postado por antonina kowalski às 21:04
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11.8.06

Aventuras caseiras 3 

Ontem aprendi sobre dilemas morais e tomei laxante para fazer exame de coluna (hã? Vou ter de perguntar o dr. Dráuzio o que uma coisa tem a ver com a outra).
e hoje no almoço já pude colocar em prática todo o novo ramo do conhecimento que se abriu para mim ao jogar Sem Censura.
Ao passar diante da vitrina de verão da loja, observei com deslumbre novos sapatos que eu nem queria mas pelos quais fiquei imediatamente apaixonada.
E imediatamente pensei: pagar IPTU e economizar para as férias ou sair pisando como fada do shopping center?
O dilema ainda está em discussão interna entre o diabinho e o anjinho que, dizem, habitam em mim.
Assim como o dilema da música de cair da escada.
Mas essa é outra história.

postado por antonina kowalski às 13:32
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10.8.06

Aventuras russas 

Antonina olhava a paisagem branca pela janela do trem. Abriu o envelope que continha sua próxima missão. Ilya, o mesmo nome de um menino com quem Antonina brincava de roda na infância no norte.
Foi inevitável pensar no inverno permanente, nos dias brancos e frios, nas rodas cheias de crianças felizes por dez minutos, magras e banguelas. Pensou em como desejava naquele tempo, mais que tudo no mundo, um casaco de pele, sempre que saía à rua e o vento lhe gelava o pescoço.
Antonina até gostava de lembrar a infância. Mas as memórias eram trabalhosas e o processo de pensar nelas, tedioso.
Piscou os olhos e a cabeça bateu de leve na janela.
Virou o rosto para o o outro lado e aconchegou-se no farto casaco de pele de marta que usava. Será que faria tanto frio assim em Praga?

postado por antonina kowalski às 14:26
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9.8.06

Aventuras caseiras 2 

Na casa de Baba mãe tem um aquário. Sete peixes, um cogumelo vermelho-desbotado de plástico, enfeites de plástico, duas tartarugas sintéticas e um caramujo. Um enorme, gordo, branco (já que a Baba mãe e Neide Aparecida escovam o musgo do caramujo a cada banho do aquário) e repoltronado.
Um refestelado caramujo branco.
Dia desses vi o caramujo comer. Gruda no vidro, faz vácuo com a ventosa grande, suga, suga, suga e vem água, água e 80% de toda a comida diária dos sete peixes, que se danem os peixes, tudo na ventosa-vácuo.
Depois disso, ele estica a boca por cima da ventosa-vácuo e come, come, come, come tudo. Toda a comida.
Demorou trinta e sete minutos para o refestelado caramujo branco comer 80% da comida dos sete peixes. Assisti cada segundo.
Depois, caramujo branco foi fazer digestão. Ficou duas horas em still. Fotografia congelada, o caramujo. Nem batendo no vidro ele mexeu.
Depois refestelado caramujo foi se exercitar.
Andou pelo vidro. Demorou.
Analisou diligentemente as duas plantas de plástico: as vitórias-régia e as folhas rosa-choque. Se esgueirou até as folhas. Doze minutos.
Escalou. Escalou. Escalou. Oito minutos.
Lá no topo, vergou a folha mais alta e derroubou todo o enfeite cuidadosamente preparado pela Baba mãe na última limpeza do aquário.
Dez segundos.
Caiu em cima do cogumelo, que por sua vez caiu acordando o peixe-ímã que vive grudado no vidro.
Caos, terror, medo e pânico.
O caramujo é o PCC pessoal da casa. Tudo planejadíssimo, tudo executado com paciência tibetana.
"Baba Mãe, caramujo derrubou os enfeites novos". "Vou tirar essa lesma (sic) daí".
Mas e a diversão, Baba mãe, e a aventura? E a contemplação, pelo amor de deus, o estoicismo árcadde do caramujo que demora trinta e sete minutos para comer?
Adoro férias.

postado por antonina kowalski às 14:19
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Venturas da fé 

Na manhã daquela quinta-feira, a irmã foi informada de que era sua semana de limpar as latrinas. É claro que ela sabia, há muito, da rotatividade das semanas intermináveis, cinqüenta e duas, cento e quatro, setecentas e oitenta e sempre uma semana por ano sua semana de limpar as cloacas do convento. Mas foi naquela manhã, justo aquela, um dia ordinário de sol modorrento e nuvens pouco criativas, que a irmã deu-se a sentença.
Basta.
Era tarde demais para tomar outros rumos ou inventar novas ilusões. Mas não era tarde, no entanto, para se vingar. A irmã passou a quinta-feira tomando chás e muita água. Era preciso hidratar-se bastante, afinal a tarefa era árdua, ponderou a irmã.
Na sexta-feira, a irmã levantou-se antes das companheiras, bem cedo, antes de antes de o sol raiar, e foi à cisterna buscar o primeiro balde de água para limpar a primeira cisterna. Dessa vez, faria diferente. Limparia primeiro as latrinas de uso comum, depois as latrinas do refeitório, e por último a latrina da madre superiora.
Já passava das sete da manhã quando a irmã chegou à latrina da madre. Já bebera bastante água, muito chá, estava hidratada, ainda que com um pouco de fome. Era capaz de carregar todos os baldes de água por todas as dependências do convento e esvaziá-los em cada latrina. Foi mais fácil, contudo, chegar ao banheiro da madre superiora. A madre ainda dormia, no cômodo ao lado. Não precisaria passar por lá; era preciso apenas ser silenciosa.
Colocou o balde vazio no chão, no meio do cômodo, ficou de cócoras. Não tinha vestido calcinha naquela manhã para facilitar tudo. Esvaziou a bexiga, já dolorida. Não encheu o balde. Não era preciso. Daria algum jeito depois. Meticulosamente, limpou a pia branca, deixando-a ainda mais imaculada que antes. Limpou a casa de banho com esfregão. Esfregou os azulejos brancos, envelhecidos perto do chuveiro. Tudo cheirava a mijo, mijo com muita uréia. Mijo de chá e água, mijo puro feito para deus.
Agora a irmã já poderia descer e voltar a usar seu mictório de uso comum. A madre superiora que ficasse com o dela. Não tinha mais nada a invejar da privacidade alheia.
Feliz, com o pensamento purificado, a irmã não desejava mais largar o hábito ou deixar os auspícios de deus. A irmã foi ao banheiro comum. Lavou as mãos furiosamente. Foi ao quarto, vestiu a calcinha, não queria entrar na capela nua. Foi rezar. Deu um sorriso agradecido pelas bênçãos de Maria.

postado por antonina kowalski às 11:44
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7.8.06

Aventuras caseiras 

A vida é feita de pequenas e de grandes obsessões. Não tem nada dessa história de som e fúria. Ou talvez tenha, mas o que importam são as obsessões, essas infinitesimais manias que consomem, se a gente deixar, as vinte e quatro horas de um dia.
Obsessões milimetricamente construídas sobre todos os destroços das desilusões e das não-realizações, capazes de tornar azul o mais nebuloso dia de chuva e desespero.
Eu tenho muitas manias e algumas pequenas obsessões que me consomem e me fazem consumir dinheiro, tempo, neurônios e a infelicidade em falsas felicitações.

Copos e canecas, de cerveja, de água, de leite, de café, de chá, estampados, de formatos originais, de vacas, de flores, para não beber nada, para beber tudo, grandes, pequenos, não cabendo no armário.
Bolsas estampadas, de veludo, enormes, redondas, quadradas, temáticas, importadas, originais, engraçadas, sérias, luxuosas, invejadas. Bolsas para acomodar os documentos e as obrigações.
Caixas de madeira, de papel, de plástico, de santos, de pin ups, de chicletes, de papelão, de chá, de livros, de presentes. Caixas para esconder as memórias, proteger as aflições e livrar da vista as fotos antigas.


Longe de serem desagradáveis, as pequenas obsessões são o que me fazem (e quase só o que me fazem) ter mais prazer na hora do trabalho, na hora de sair do trabalho, na hora de me deitar sozinha na cama, na hora de mexer displicentemente o leite puro com adoçante, na hora de lavar as mãos olhando os cravos do rosto. São as pequenas coleções de pequenas obsessões que me fazem mais feliz.
Como diria aquela professora num distante dia em que eu falei algo pouco crível e nada defensável sobre o amor, as pequenas felicidades. Ou as grandes e verdadeiras utopias. As caixas. Quem sabe.

postado por antonina kowalski às 19:31
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