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27.6.08

Marcha a ré 

Senhorita K. aprendeu a dirigir com dezoito anos. No dia da prova, claro que não havia aprendido nada. Atropelou um pedestre, subiu nuns três, quatro meios-fios, deixou o carro morrer. Pequenas infrações devidas, claro, ao nervosismo.
Senhorita K., tempos depois, passou na prova, mesmo não conseguindo dar a ré para estacionar na vaga criada pelos cabos de vassoura e cones laranjabrancos.
Ela devia ter percebido. Era um presságio.
Que vai se cumprindo aos poucos, cada dia um pouco mais.
Da primeira vez que bateu o carro por culpa sua (com três dias de carro novo, bateram no carro de Senhorita K. duas vezes no mesmo dia. Mas ela não teve culpa e nem viu o caminhão que se aconchegou na traseira do carro à noite), Senhorita K. deu ré na árvore. A árvore era grande, bem frondosa, florida, nem era tempo de seca. Era dia primeiro de julho de dois mil e um e o retrovisor direito de Senhorita K. ficou no chão, junto com a tinta azulescuroperolado do corsa.
Senhorita K. escondeu o crime com fita adesiva preta, até que em um balão, a fita falhou e o retrovisor foi ao chão, bem aos olhos de mamãe.
A segunda vez que Senhorita K. bateu o carro, nem era dela. Chegava da universidade num dia ensolarado rumo à casinha de brinquedos, cantando, quando o corsa alheio ficou grande demais para passar na vaga enorme, de ré, e se aconchegou na pilastra.
A terceira vez que Senhorita K. bateu o carro, era dela. Um outro carro. Saía da casinha de brinquedos para a universidade num dia ensolarado, cantando, quando o celta dela ficou grande demais para passar na vaga enorme, de ré, e se aconchegou na pilastra. Na mesma pilastra. Era dia primeiro de fevereiro de dois mil e sete.
A quarta vez que Senhorita K. bateu o carro, ela sofreu até de estresse pós-traumático, bem como sua conta bancária. Dava ré no estacionamento do trabalho com velocidade e técnicas arrojadas, Senhorita R. no passageiro, quando viu que seu carro teve um contato imediato de terceiro grau com o caminhão. O caminhão amarelo da Skol. O carro gostou tanto do encontro que ficou grudadinho. Os moços da Skol, que nem uma cerveja lhe deram, tiveram de descer o celtabrancosujo da lataria do caminhão.
Senhorita K. já não faz balizas. Senhorita K. já não estaciona de ré. Senhorita K. jura, jura mesmo, que dirige muito bem. Só não se dá bem com o espelho retrovisor.

postado por antonina kowalski às 13:51
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20.6.08

Quaquaraquaquá, quem riu? 

Senhorita K. contou hoja uma pretensa piada à amiga pelo gtalk. A amiga, sentada a cinco metros de distância, responde pelo gtalk: “kk”. Era uma risada. Mas Senhorita K. acredita que não era uma risada legítima, afinal no mundo real e sonoro todo e qualquer “kkk”tem que ter pelo menos cinco cás. Ria sozinho e em alto bom som e pode contar: kkkkk.
Senhorita K. então se pôs a pensar na variedade de risadas internéticas que escuta na sua imaginação, sempre que as lê.
Uma amiga de Senhorita K. ria sempre “hohoho”, uma coisa meio papai noel com o saco cheio de sarcasmo e ironia. Senhorita K. nunca se sentiu à vontade para reproduzir o som dessa risada.
Outra amiga, a do kk, costuma ser mais generosa em suas demonstrações de diversão. Normalmente, são vários cás. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk, ela escreve.
Senhorita K. se sente um pouco recatada para reproduzir essa risada, porque nunca se imaginou no mundo da vida real rindo assim.
Alguns amigos, diante de algo muito engraçado, riem com sonoridades interessantes. Haeaheiaheiaiuehaieueha. Senhorita K. consegue perfeitamente imaginá-los rolando de rir diante da cena engraçada da tevê. Mas, igualmente, Senhorita K. se sente discreta demais para essas demonstrações de felicidade e alegria esfuziantes.
A mesma amiga do kkkkkkkk, que é uma pessoa de riso fácil e versátil também no mundo da vida real, gosta às vezes de rir hihihihihi, quando a fofoca é daquelas que provocam risos entre assanhados e divertidos.
Senhorita K., pessoa pouco criativa que é, só consegue rir de três jeitos no mundo virtual. Quando ri de alguma coisa normalmente, diz hahahahahahaha. Quando ri protocolarmente, de algo engraçadinho contudo não hilário, ri hehehe. Normalmente, só três hes. Porque quatro hes não soam onomatopeicamente muito bem, Senhorita K. pensa.
Quando algo é realmente, estrondosamente, estrepitosamente engraçado, Senhorita K. se dá o direito de rir em capitulares. HAHAHAHAHAHAHAHAHA, escreve ela, muitas vezes rindo no mundo da vida real sonoramente.
Senhorita K. até gostaria de ter um repertório mais variado de risadas. Mas a verdade é que, a despeito da timidez, da discrição e da falta de criatividade, no mundo da vida real, Senhorita K. é uma pessoa de riso pouco, contido. Sincero mas esparso, raro, escondido. Senhorita K., no mundo da vida real e no gtalk, é uma ranheta.

postado por antonina kowalski às 12:19
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10.6.08

Chatos. Ranzinzas. Adorável. 

Diálogos são coisas muito divertidas, especialmente quando não há choros e vozes em tons alterados neles. Senhorita K. teve dois diálogos muito divertidos por esses dias.

Diálogo 1:
K. - Como foi a noite?
P. - Foi boa, mas não gostei dos amigos.
K. - Ué, qual o problema com os amigos?
P. - Eles eram chatos.
K. - Nós somos chatos.
P. - Sim, somos. Mas eles eram diferentes.
K. - Diferentes como?
P. - Animados.
K. - É, nós definitivamente somos chatos ranzinzas.

Diálogo 2:
K. - Eu sou uma chata adorável. E ele sabe disso.
H. - Sabe?
K. - Sabe, quer ver?
(K. - Você sabe que eu sou chata, né?
R. - Já deu pra ver).
K. - "Você sabe que eu sou chata, né?
R. - Já deu pra ver)." Viu como ele sabe?

É. De fato. Todo mundo sabe. Mas Senhorita K. acha muito dignas as pessoas que, como ela, reconhecem a própria chatice e dão tratos à bola dela.

postado por antonina kowalski às 10:44
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5.6.08

tão bonito que parece quadro 

Brasília tem um pordosol tão, mas tão bonito, que quase faz acreditar que deus existe. Mais um pouco, e Senhorita K. seria uma moça de fé todos os dias entre as cinco e as seis e meia da tarde.
O pordosol de Brasília tem a capacidade terapêutica de fazê-la sorrir quando sai do trabalho no horário de verão e ainda há púrpura, laranja, azul tudo misturado na despedida do dia chegada da noite.
A capacidade tranqüilizadora de fazê-la relaxar num dia ameaçador no trabalho.
O pordosol multicor em tons pastéis tem a rara capacidade, compartilhada por poucas coisas como o quindim ou o algodãodoce ou as girafas, de deixar Senhorita K. de humor vermelho num dia de humor azul acinzentado.
Hoje, Senhorita K. estava observando o pordosol da varanda.
Um daqueles em degradês de corderosa, iluminados, carregados de felicidade e deleite estético.
Um moço do trabalho compartilha da contemplação com Senhorita K. e comenta que o céu parece feito de pinceladas.
E Senhorita K. se lembra de como sempre achou engraçado que a beleza da vida real é sempre comparada à beleza de uma agradável tela em tinta a óleo.
Se lembra de como, sempre que alguma coisa na vida real e palpável e nem sempre muito boa e às vezes tremendamente desagradável é memorável, todo mundo a compara a algo que não existe. Um livro, um filme, um quadro.
Em como é mais fácil entender que a vida que não existe e não é vivida encarcerada em páginas, tela ou moldura é mais factível que essa em que as pessoas são obrigadas a existirem.
Em como parece a todos que um dia bonito, um acontecimento feliz, uma frase de efeito, se assemelham muito mais à a arte que à vida de verdade.
Talvez a verdade seja simples, como quase tudo na vida tirando a vida toda. Viver, muitas vezes, traz tantos aborrecimentos, tantas decepções e tão raros momentos incrivelmente felizes e prazerosos que é muito difícil, senão quase impossível, se lembrar mais dos sorrisos que das lágrimas. E é por isso que todo mundo guarda aquela imagem de Monet, aquele filme do Billy Wilder, aquele livro da Adriana Falcão, muito mais doce e embalado na memória, que as felicidades reais e vividas que, de tão implausíveis, parecem inventadas em sonhos.

postado por antonina kowalski às 15:18
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